Cinema não é neutro
O Tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2019 foi \”Democratização do acesso ao cinema no Brasil\”. A prova foi aplicada no domingo (03/11). Os portões se fecharam às 13h e o tema da redação foi divulgado já pouco antes das 14h pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Como sempre, os candidatos tiveram acesso a textos de apoio para ajudar na argumentação. Nessa prova, foram: um fragmento do artigo O que é cinema, de Jean-Claude Bernardet; um trecho do texto O filme e a representação do real, de C.F.Gutfreind; um infográfico do periódico \”Meio e a Mensagem\” sobre o percentual de brasileiros que frequentam as salas de cinema; um fragmento do texto Cinema perto de você, da Ancine
No Twiter, como ocorre todo ano, começaram as discussões sobre o tema. Um twitt que viralizou particularmente chamou minha atenção. Não vou colocar a @ da pessoa porque não a conheço e minha intenção não é responder a essa pessoa em específico, só acho que o twitt dela meio que sintetiza uma série de outros twitts que li. Mas, enfim, a pessoa afirmava que o tema da redação era politicamente neutro e perto de muitos outros problemas sociais, acesso ao cinema é algo irrelevante.
Ai, ai. E lá vamos nós para a palestrinha.
Primeiro de tudo, a redação do ENEM visa avaliar a capacidade de argumentação do candidato, não é ranqueamento de maiores problemas do Brasil. Até porque, quem define quais os maiores problemas da população? Cada estado, cidade ou bairro tem suas demandas e, por mais que problemas de saúde, educação e segurança pública sejam comuns, cada local tem sua urgência.
Porém, retornamos ao ponto central do twitt, a irrelevância e neutralidade, do cinema. Nonsense. Democratização do cinema, algo que ainda não temos, é inclusão socioeconômica, é acessibilidade para deficientes auditivos, visuais e cadeirantes. Não tem nada de neutro nesse tema.
Tema apolítico? Depende de quem escreve. Se você estivesse prestando a prova, poderia escrever sobre como grande parte das cidades brasileiras não possuem cinema e as salas se concentram no Sudeste, principalmente nas capitais.
Poderia escrever sobre como a maioria das salas de cinema ainda não garantem acessibilidade, embora já exista uma norma da ANCINE que prevê recursos de legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e Língua Brasileira de Sinais (Libras) para quem solicitar.
Poderia escrever sobre o alto custo dos ingressos de cinema. Por exemplo, Niterói, onde eu moro, é uma cidade com um bom número de salas. Mas, apenas o Cine Arte UFF apresenta preços mais em conta (ingressos de 6 a 12 bonoliros). Já o Cinemark Plaza Shopping tem preços que variam de 28 a 72 bonoliros, dependendo do dia da semana e tecnologia da sala (3D, D-Box e sei lá mais o que).
Outro enfoque poderia ser a falta de democratização na distribuição dos filmes. As salas são maciçamente tomadas por blockbusters hollywoodianos, sobrando pouco ou nenhum espaço para o cinema brasileiro, o cinema de outros países e até para o cinema independente estadunidense. Inclusive, sobre esse tema, recomendo fortemente o blog da minha parsa de Twitter, Marina, o Simplificando Cinema. Tem muita coisa sobre legislação e distribuição por lá.
Em resumo, não falta assunto para problematizar até fazer bico.
Outro argumento que vi muita gente usar para criticar esse tema, é que Cinema no Brasil é elitizado, logo muitos candidatos do ENEM nunca foram ao cinema e não seriam capazes de escrever sobre o tema. Eu fiquei até em dúvida se o tema era a democratização do cinema ou uma análise da filmografia do Tarkovski.
Como já falei no início do tempo, o objetivo da redação é medir a capacidade do candidato de construir uma argumentação. Dizer que um estudante que nunca foi ao cinema não saberá argumentar sobre o acesso à Sétima arte, seria o mesmo que dizer que um morador de área urbana não poderia argumentar sobre agricultura familiar, por exemplo; o estudante de área rural não saberia falar de mobilidade urbana; um candidato de classe média não escreveria sobre a precarização da saúde. Na real, o estudante poderia até incluir sua experiência em não ter acesso ao cinema para exemplificar como essa democratização não existe por aqui..
O que dificuldade a vida dos mais pobres na hora do ENEM não é o tema da prova, é a educação insuficiente, é falta de transporte público, é operação policial no dia da prova, é o próprio modelo de avaliação.
Mas, o que noto junto a esse argumento de o tema foi elitista, é aquele velho tonzinho de condescendência com pobre, que a parte da esquerda abastada tanto gosta. Fala como se quisesse ajudar, mas, na verdade, estão dizendo: \”tadinhos, eles não conseguem, pobrezinhos, não são tão inteligentes nem têm tanta cultura quanto nós\”.
E eu fico PUTA com essa condescendência. Essa visão de que pobre é simplório, é ignorante. Quem já acompanha o Cultura Pop A Rigor sabe que esse blog nunca foi confessional e, mesmo nas redes sociais, sou reservada e não gosto de falar sobre minha vida pessoal. Mas, vocês me dão licença, que vou falar um pouco dos meus pais.
Meu pai, Gilberto, nasceu em Duque de Caxias (RJ) e estudou até a 4° série do ensino fundamental. Vendeu bala em trem, engraxou sapato, foi peão de obra, vigilante e porteiro. Minha mãe, Jocira, nasceu na área rural do Espírito Santo, num lugar chamado Jaqueira. Foi poucas vezes à escola, porque era muito longe de casa e quando chovia, só dava para chegar de barco. Além disso, ela tinha que ajudar minha avó, viúva, com a criação de porcos e a lavoura. Na adolescência, quase casou com um fazendeiro com filhas pouco mais novas que ela, mas preferiu vir para o Rio de Janeiro trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro, como doméstica e cozinheira (inclusive, que cozinheira!).
Meu pais eram humildes. Mas, eram simplórios e ignorantes? Vai nessa, beloved.
Meu pai estudou até a 4° série, mas não deixava de ler o jornal um dia que fosse. Ah, e sabia tudo de lei trabalhista e previdência social. Um HAHAHA na cara de patrão que tentasse passar a perna. Mommy aprendeu a ler sozinha e também nunca aturou desaforo de patrão/patroa. Meu primeiro modelo de mulher independente. E sabe do que mais? Meus pais amavam ler, amavam cinema e amavam música. Sempre lembro do meu pai falando dos cinemas de rua aqui do RJ e como eles marcaram a infância e adolescência dele. E era piadinha constante na família, de como era impossível tentar falar qualquer coisa com minha mãe, quando estava lendo, porque ela não ouvia nem via mais nada, de tão entretida. Vem muito dos meus pais, o meu interesse por literatura, filmes e música. E, por causa deles, não precisei trabalhar durante a infância e a adolescência, pude ler, ir ao cinema, ouvir muita música e fazer faculdade.
E por que estou dando esse pequeno contexto sobre minha família? Porque esse argumento de que precisa resolver os problemas da saúde, educação, segurança pública e etc antes de discutir cinema, é raso. Direito à cultura é tão fundamental quanto à saúde, à educação (e é uma enorme aliada da educação), à segurança. Uma reivindicação não exclui a outra. Mas, como já afirmei, muita gente acha que pobre só se importa com comida e remédio. Pobre que tem ou quer ter um smartphone não é pobre mesmo; pobre que quer ir à show, ao cinema, ao teatro, não é pobre de verdade. Lazer e cultura é luxo, reservado à elite, que ama a exclusividade, para assim se sentir especial, acima do povo, a quem sempre se refere de forma distante, como se não fizesse parte desse grupo.
Quem diz que cultura não é relevante, é justamente quem tem o privilégio de ter acesso irrestrito a ela. É algo tão corriqueiro na vida dessa pessoa, que parece ser um assunto sem importância.
Cinema é cultura e cultura nunca é supérflua. Nem neutra. Cultura é resistência, é libertação. Que o diga Seu Gilberto e Dona Jocira.