A gravação estava marcada para às 22h00, mas só agora, às 22h30, Rodrigo entrou no chat. Bia não conseguiu evitar que seus olhos rolassem dentro da órbita, quando ouviu as desculpas. Estava aborrecida, e não só pelo atraso. Já haviam tentado gravar a porra daquela pauta na semana anterior, mas a internet dele caiu no meio da gravação. Além disso, nem era uma boa pauta. As boas pautas vinham se escasseando nos últimos podcasts, não é, Bia? Até alguns ouvintes já apontavam que os programas estavam ficando repetitivos e preguiçosos.

Bia rolou os olhos mais uma vez. Rodrigo ainda havia cismado que eles tinham que testar esse software novo, só porque todo mundo está usando. Nada contra experimentar, mas tinha mesmo que ser com um tema que eles já tinham tentado gravar e falhado? Bia já preparava a lista de xingamentos caso algo saísse errado.

Greg: adicionar. Enter. Digitou Bia para acionar o bot de gravação do software. Louvada seja a lua, respondeu o bot. Greg: entrar. Enter. Escreveu no chat, desta vez para iniciar a gravação.

– E, aí, galera? Estamos começando mais um Pod…

– Que foi? Bia perguntou, quando Rodrigo parou de falar de repente.

– Foi mal, o Frajola passou roçando na minha perna. – Cadê você, seu pentelho – disse para o gato – O qu…

Rodrigo? Chamou, depois de uns dez segundos de absoluto silêncio. Ele continuava conectado, mas nenhum som vinha de seu microfone. Bia checou seus fones e o volume de mídia em seu smartphone. Tudo ok. O pc dele deve ter travado… pensou.

Bia esperou alguns minutos e já estava quase saindo do aplicativo, quando pensou melhora: já estavam a muito tempo sem postar. Ele entra quando conseguir. Continua sozinha.

– E, aí, galera? Estamos começ…

Parou de falar quando viu a pequena cabeça cor de caramelo surgir no pé da cama. Os olhinhos redondos e escuros a observavam com curiosidade. Qual é mesmo o nome desse bicho? Furão? Não… Doninha. Era isso. Tinha uma doninha no seu quarto.

O animal nada fazia. Olhava-a e, vez por outra, inclinava a cabeça, ora para a direita, ora para a esquerda. Será que tinha escapulido de algum apartamento vizinho? Foi então que o animal falou:

– Não, você não prosseguirá – Afirmou, com uma voz grave demais para a pequena figura – Eu não permitirei.

Bia ficou estática, sem conseguir concatenar  pensamentos e, muito menos, articular uma fala.

– A qualidade de seu conteúdo está muito abaixo de nossos padrões. E você, Beatriz, possui total ciência desse fato. Porém, a mediocridade está em sua natureza.

Bia sentiu o rosto arder. Estava sendo duramente criticada por uma doninha. Criticada, não. Ameaçada.

– Essa gravação nunca chegará a podosfera – Concluiu a Doninha, passando sua pequena pata pela garganta, em um gesto ameaçador. Bia notou gotículas vermelhas manchando o pelo branco de seu peito. MEXA-SE, gritou mentalmente quando a criatura saltou sobre ela.

Beatriz sentia a dor aguda e o sangue escorrer pelo corte na coxa, mas não tinha tempo para o ferimento. A Doninha seguia-a, implacável, saltando por sobre os móveis, tentando cercá-la. Bia não saberia dizer como, mas conseguiu ser mais rápida, fechando o animal no quarto.

Caída no chão do corredor, ela tentou recuperar o fôlego. De jeito nenhum a velha porta deslizante seguraria a criatura. Bia se apoiou na parede para se erguer.  A Doninha arranhou furiosamente, até forçar sua liberdade. Só então a podcaster percebeu que ainda segurava seu celular. Destravou a tela com o polegar. Olhou a doninha que ficou em pé, sobre as patas traseiras. Abaixou os olhos para a tela e viu o ícone sorridente do bot de gravação; o pelo brilhante, cor de caramelo. A Doninha se preparava mais uma vez para saltar. Dessa vez, não haveria escapatória.

Greg; sair. Enter. Digitou Bia, o mais rápido que pode. Deixou-se escorregar de volta ao chão. A doninha se fora.

Este conto fez parte da antologia Podosfera assombrada do Desleituras, podcast do Teatro Escuro do Pensador Louco

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