[Conto] Quando Charlie Negocia

Estou voltando a escrever e aproveitei para colocar aqui no CPR alguns textos que estavam perdidos por aí no Medium, Tumblr e Google Drive:

Charlie era um garotinho de seis anos de idade. Charlie também era um garotinho muito, muito, muito tímido e solitário. Filho único, seu pai falecera quando ele ainda era um bebê. Acidente de carro. Charlie não sabia de maiores detalhes, mas a mãe não gostava de falar no assunto e Charlie não queria perguntar a ninguém, nem mesmo a Tia Sarah. Já falei que Charlie era muito, muito, muito tímido, não é mesmo?

Ele e Mamãe viviam de maneira discreta, porém confortável. Não eram ricos. Ao menos, assim pensava Charlie, afinal, ele achava que a Mãe não passaria horas fazendo contas, se eles fossem ricos. A Mamãe também fazia umas esculturas que Charlie não compreendia bem e, vez por outra, ela expunha peças em galerias e elas eram vendidas. Charlie ficava imaginando quem gostaria de ter em casa aquelas esculturas. Que a Mãe não o ouvisse.

O importante era que a Mãe lhe dava roupas e brinquedos novos periodicamente, a comida era farta, não tinha com que se preocupar. Quer dizer, Charlie não teria nada com que se preocupar, isso se não fosse a sua timidez. Na verdade, ser tímido não incomodava a Charlie, era só seu jeito, mas incomodava aos outros, principalmente a Mãe.

Charlie não era de conversar, nunca olhava os adultos nos olhos e só lhes falava quando questionado sobre algo, ainda assim, respondia com monossilábicos, grunhidos ou gemidinhos ininteligíveis. Com outras crianças, ele não se dava. Ficava mal-humorado, não tinha nenhuma paciência e acabava brigando com elas.

Veja bem, Charlie era um menininho muito comportado e bem educado, não fazia nada de mal para ninguém, mas também não queria “fazer amizade”, como a Mãe dizia, quando tentava lhe empurrar algum filho de amiga para ser seu amigo. Aí Charlie se rebelava. Ele podia ser tímido, mas não ia admitir que sua Mãe ficasse lhe impondo companhias desagradáveis. Desagradáveis, sim. Era sempre uns moleques faladores e irritantes, que não o deixavam ler seus gibis nem sossegavam para assistir a um filme. Não, eles só queriam saber de correr, jogar bola e outras brincadeiras tolas de empurra-empurra. E, obviamente, todos gostavam dele tanto quanto eles os achava interessantes.

A escola era outro aborrecimento. Charlie era um excelente aluno, só tirava notas altas. Foi o primeiro da turma a ler. O primeiro assinar seu nome completo e a escrever tudo mais. O aborrecimento era a tal da socialização. Sua Mãe até foi chamada na escola por conta da falta de interação de Charlie com as outras crianças e de sua dificuldade em se comunicar oralmente. Muitas vezes, sabendo a resposta a uma pergunta, afinal era o aluno mais avançado da classe, Charlie não se manifestava; aliás, às vezes, nem à chamada ele respondia. Aí era a sua Mãe quem se aborrecia, mas, Charlie só lhe dizia que a Professora bem sabia que ele estava na sala: para que ele precisava responder?

Nada que a Mãe fizesse dava jeito na timidez de Charlie. Ele espantava todos os filhos de suas amigas, com seu sarcasmo e ar de superioridade. Todos o achavam estranho e irritante. E a Mãe bem sabia que não era só as crianças, suas amigas também o achavam estranho e irritante. Ora, às vezes, ela também o achava assim.

A Mãe também tentara apelar para um psicólogo, mas ele não viu grande mal no comportamento de Charlie e pediu que ela tivesse paciência, que aos poucos, o menino ia acabar se tornando mais sociável. Só que a Mãe de Charlie não era de ficar esperando nada, muito menos com paciência. Ficara tão irritada com psicólogo, que nunca mais levara seu filho até o consultório. Ela mesma daria um jeito no problema de Charlie.

A Mãe tinha certeza que o filho era inteligente e poderia ser um grande homem no futuro, alguém importante, talvez um político, um advogado, um diplomata. Ela já podia vê-lo discursando e palestrando sobre milhares de temas importantes, encantando plateias. Por nada nessa vida, ela ia deixar que a timidez do menino estragasse o brilho de suas previsões. Estava na hora de tomar uma atitude drástica, antes que fosse tarde demais para Charlie mudar.

Era uma manhã de outono e a Mãe tinha um plano. No dia anterior, dera a mesada a Charlie; uma quantia muito maior a que ela costumava presenteá-lo todos os meses. O menino estranhou, mas preferiu nada dizer. Ela podia mudar de ideia. A Mãe sentiu alivio ao não ser indagada, porém, de qualquer forma, ela não poderia mudar de ideia. A Mãe tinha total confiança que Charlie se sairia bem, mas o dinheiro poderia ser necessário.

Aos sábados, Charlie costumava apenas ficar em casa, assistindo aos desenhos na televisão, depois almoçava com a Mãe e fazia as tarefas de casa, lia seus gibis ou assistia a um filme. Normalmente, a Mãe ficava em seu estúdio, trabalhando em suas esculturas, só parando na hora da refeição. Mas, aquele sábado seria diferente. Ela contou a Charlie que, dessa vez, não trabalharia. Eles iriam fazer um passeio no centro da cidade, andar nas lojas e almoçar em alguma lanchonete. Se ele quisesse, poderia gastar sua mesada na loja de brinquedos.

O centro ficava a cerca de meia hora da casa de Charlie. A viagem foi silenciosa, a Mãe estava bastante calada, o que era incomum, todavia, Charlie não gostava de iniciar conversas, mesmo com a ela, a menos que quisesse perguntar algo especifico. Como não tinha nada para perguntar, preferiu ficar quieto, observando a rua através da janela fechada do carro.

A Mãe estacionou o veículo em frente a uma loja de roupas femininas. Charlie soltou um suspiro, já imaginando o quanto teria que esperar até ir na loja de brinquedos.

– Vai ser rápido, querido. Só preciso de um casaco novo… talvez umas blusinhas também…- Ela não soou muito convincente e Charlie apenas gemeu, resignado.

– Ora, porque não fazemos assim: você vai até a livraria– a Mãe propôs, apontando o pequeno sebo, com um gesto de cabeça — Enquanto faço minhas compras. Eu encontro você lá e nós vamos até a loja de brinquedos.

Charlie mal pode acreditar. A Mãe não costumava deixa-lo andar sozinho por aí, somente nos arredores de sua casa, que era um local tranquilo e, ainda assim, para saídas rápidas, como ir até a banca de jornal ou à padaria. Talvez, finalmente, tivesse percebido que ele já estava crescido.

Para mostrar o quanto era responsável, atravessou a rua com bastante cuidado, esperando todos os carros pararem em frente a faixa de pedestres, afinal, ele sabia que a Mãe o observava e um erro, poderia significar que não poderia sair sozinho pelos próximos quinze anos.

O sebo era pequeno, com prateleiras abarrotadas de livros e revistas, que também eram empilhados pelo chão, por toda parte. Uma camada de poeira cobria o local e Charlie já notara as enormes manchas cinza cobrindo as paredes supostamente amarelas, quando o cheiro da umidade penetrou suas narinas. Mas, havia livros e revistas. Muitos mesmo.

Não havia mais ninguém por ali, exceto o velho sentado atrás do balcão, provavelmente o dono e ele parecia quase tão velho quanto alguns dos livros à venda, pensou o menino. Charlie passou a examinar os títulos nas estantes, se detendo na sessão de ficção cientifica. Havia muita coisa de H.G. Wells, Verne e Asimov. Como não queria gastar sua mesada em um só lugar, se demorou escolhendo o que levar. Optou por um exemplar de O Homem Invisível, que ainda não tivera a oportunidade de ler.

Quando caminhava para o balcão, olhou para o relógio em seu pulso, presente da sua tia Sarah, em seu último aniversário. Tomou um susto. Ficara por quase uma hora entre os livros. Se apressou em entregar o dinheiro ao velho no balcão. Era um exemplar de bolso, já surrado e custara bem pouco. O velho apanhou o dinheiro e colocou o livro dentro de uma sacolinha preta. Sacola de peixe, como costumava classificar a Mãe. E, por falar nela, ainda devia estar na loja. Charlie resolveu que seria melhor a esperar lá. Deixou o sebo, pensando que ainda teria de aguentar um pouco das compras de roupas, antes de partir para os brinquedos.

Atravessou a rua novamente com cuidado. Ao entrar na loja não viu a Mãe. Começou, então, a caminhar entre os corredores. Perto dos caixas, ficou na ponta dos pés, para enxergar melhor:

– Perdido, menino? Perguntou a Vendedora  —  Onde está sua mãe?

Charlie não tinha visto a Vendedora se aproximar.

– Ela deveria estar fazendo compras aqui  —  respondeu, sem encara-la

– Talvez esteja nos provadores. Espere aqui  —  Ela pediu, caminhando até o fundo da loja.

A Vendedora falou com outra que ficava na entrada dos provadores e retornou rapidamente.

– Os provadores estão vazios. Tem certeza que ela veio para cá?

– Vai ver nos desencontramos  —  Charlie tentou aparentar tranquilidade, apenas para encurtar a conversa.

– Vocês iam se encontrar aqui?

– Não, ela ia me buscar na livraria em frente — Já que não iria se livrar da funcionária, talvez ela tivesse alguma informação — Ela é morena e alta, está com uma blusa azul… a senhora a viu?

– Não, não vi… estou aqui a manhã inteira, mas não vi ninguém assim entrar — respondeu — Por que não vamos até a livraria? Ela deve estar procurando você — Concluiu a Vendedora, já o tomando pela mão.

– Não precisa!  —  Charlie puxou sua mão, se desvencilhando dos cuidados da mulher  —  Está tudo bem, posso ir sozinho.

A vendedora o olhava com surpresa

– Ok, mas se não encontra-la volte aqui.

Charlie atravessou a rua novamente, mas dessa vez foi correndo. Estava começando a ficar inquieto.

– Senhor, passou uma moça por aqui, de blusa azul, talvez tenha perguntado por mim? — disse, se dirigindo ao Velho dono do sebo

– Você foi o último a entrar aqui, garoto. Respondeu o velho, sem grande interesse.

Charlie voltou a rua, observando ao seu redor. Por ser sábado, o movimento não era tão grande. Foi quando ele se deu conta: o carro de sua Mãe não estava mais estacionado na calçada da loja. O que teria acontecido a sua Mãe? Será que se sentira mal e fora levada ao hospital? Não, não podia ser isso, pois o carro ainda estaria no mesmo lugar. Sequestro. Sim, só podia ser isso. Ele ouvia sempre os adultos falarem que a cidade estava ficando perigosa. Sequestro relâmpago. Era a única coisa que fazia sentido.

Entrando correndo na livraria, pediu:

– Senhor, posso usar seu telefone?

– Só pode ligar para fixo  —  respondeu o homem.

Charlie agradeceu. Queria pedir ajuda a Tia Sarah, mas não sabia o telefone de cabeça, só se lembrava do número de sua própria casa. Não custava tentar… se ninguém atendesse, teria que procurar um policial:

– Alô?  —  disse a voz, do outro lado da linha.

Charlie ficou sem ação. Era a voz da Mãe.

– Mãe!  —  conseguiu dizer, ainda recuperando-se da surpresa  —  M-mãe, por que está em casa? Eu esperei na livraria, depois fui até a loja e a senhora não estava. Está se sentindo mal?

– Não, estou muito bem, querido  —  Respondeu a Mãe, calmamente  — Apenas decidi deixa-lo aí.

– C-como assim, me deixa aqui?!?

– Charles, vamos ser francos: você é uma péssima companhia. Antissocial, mal-humorado e ainda afasta minhas amigas, pois assusta os filhos delas. Não posso ter um filho assim, que ler o dia inteiro e se comunica com grunhidos. Para mim, basta.

– Você não pode me abandonar! — Lágrimas começavam a verter através dos olhinhos de Charlie.

– Já o fiz — a Mãe continuava fria.

– N-não, você precisa vir me buscar… eu prometo que vou melhorar…

– É o que todos dizem… se quiser voltar para casa, arrume um jeito de vir sozinho!

– M-mas, Mãe… eu não sei… — Ela já havia desligado o telefone. Charlie colocou o telefone de volta no gancho e agradeceu ao dono do sebo. O velho ia perguntando porque ele chorava, mas o menino já saíra da loja, numa carreira.

Como ela pudera fazer algo assim? Descartá-lo dessa forma? Ele não gostava de fazer amizades e conversar lhe era difícil, mas, o que tinha isso? O psicólogo que ela mesma contratara não via problema! Ficou imaginando o que dera na cabeça de sua Mãe. Será que enlouquecera? Será que alguém a coagira a abandoná-lo? Será que era mesmo a sua Mãe? Não, não podia ser nada disso. Ela não parecia nenhuma louca ao telefone, muito pelo contrário, estava calma e controlada; também não fazia sentido que alguém a obrigasse a deixá-lo. A outra hipótese também era inverossímil, era a voz dela e, além do mais, porque alguém invadiria a sua casa e imitaria a sua Mãe, só para lhe pregar uma peça. Era estupido demais.

Sobrava apenas uma única hipótese: ela não o amava mais. Sentiu os pulmões arderem e o coração bater forte. Parou de correr. O que ele faria agora? Só lhe restara a mesada em seu bolso e o velho exemplar de bolso de O Homem Invisível, dentro da sacola preta de peixe.

Olhando em volta, percebeu que nunca estivera naquela parte da cidade. Não era para menos, o lugar estava bem longe de ser convidativo. Um bar nada charmoso, com homens também nada charmosos parados à porta, nas mesinhas, ou sentados na calçada; uma peixaria exalava um cheiro podre. Droga. Ele correra tanto, que sem perceber, se perdera. Fazer o quê? Já estava perdido antes, de qualquer forma. Será que era uma boa ideia pedir informação ali? Onde ficaria o posto policial?

– Ei, garoto! O que tem na sacola? Chamou um dos homens no bar.

Não, não era uma boa ideia. Charlie não se virou. Ouviu risadas. Continuou andando.

Já eram duas da tarde, ele estava com fome e tinha que decidi o que fazer. Ele não podia simplesmente aceitar um absurdo desses. Ele tinha seis anos, ela não podia simplesmente mandá-lo embora, como se ele fosse arrumar um emprego e alugar um apartamento. Ela era a Mãe. Tinha que amá-lo. Era para isso que ela servia, ora. Tinha que achar um policial e contar sua história. Ele o levaria para casa. Charlie sabia seu nome completo e o da Mãe, não deveria ser tão complicado achar a casa. Aí ela teria que se explicar. Deve haver alguma lei que proíba as mães de largar seus filhos na rua.

Mas, e se ela inventar alguma desculpa? Pode dizer até que ele fugiu de casa. Era adulta. Iam acabar acreditando nela. O mesmo aconteceria, caso ele procurasse a Tia. Não isso não servia. O que ia fazer? Aceitar viver na rua? Mendigar? Essa perspectiva não parecia nada boa.

Charlie estava tão absorto que nem percebera que era seguido:

– Ei, garoto? Não vai responder?

Devia ser o mesmo homem que chamara na porta do bar

– Desculpe, senhor, minha Mãe diz para não conversar com estranhos — Era mentira, claro, sua Mãe daria uma festa, caso ele conversasse com quem quer que fosse.

– O que você tem aí, moleque?

Dessa vez, Charlie não respondeu, estava concentrado em acelerar o passo.

– Vem aqui!

Charlie tentou correr, mas o homem o segurou pelo braço, quase torcendo-o. O menino finalmente se virou, para olhar seu interlocutor. Era um homem de meia-idade, alto, gordo e careca. Usava uma calça jeans surrada e um tênis que já vira dias melhores. Porém, foi a camisa que chamou-lhe a atenção. Era uma camiseta branca, mas estava tão encardida e amarelada, que enojou Charlie:

– Eu não tenho dinheiro! Falou a criança, quando o cheiro de suor e álcool chegou ao seu nariz.

– Vamos ver.

Com apenas um braço, ele imobilizou o pequeno Charlie, mantendo-o preso, junto a seu corpo. Com a outra mão, o homem pegou a sacola preta, que caíra no chão quando o menino tentou fugir. Charlie não tinha ideia de como se livraria dessa dificuldade. Olhou para todos os lados e não viu ninguém.

Ao perceber que era apenas um livro, o Gordo não escondeu sua decepção, sacudindo Charlie pelo braço:

– O faz por aqui, moleque?

– Ei!

A voz vinha de algum lugar atrás de Charlie, mas o Gordo o segurava firme e ele não conseguiu se virar.

– Deixa o garoto em paz!

– Não te mete, cara. Tô só aqui, batendo um papinho com o meu guri.

– ELE NÃO É MEU PAI! Charlie apressou-se em negar a informação, horrorizado com a ideia.

-Não precisa negar, garoto — disse o homem que acabava de chegar — Suas roupas são muito caras e muito limpas para serem do filho desse sujeito!

O Gordo bufou, jogando Charlie no chão, já se posicionando para a briga. O menino pode, então, ver o recém-chegado. Era tão alto quanto seu raptor, porém era magro e muito mais jovem. Ele deve ter saído de um dos prédios próximos, embora Charlie achasse que, pela fachada, nenhum estaria em condições de ser habitado.

Ao contrário do Gordo, o Homem Mais Novo mantinha uma postura relaxada. Quando o outro se aproximou, cerrando os punhos, puxou do bolso traseiro da calça jeans uma faca de caça. O gordo pareceu refletir sobre a situação:

– Pode ficar com o pirralho! Ele não tem nada mesmo! — disse, abaixando os punhos.

O Gordo começou a se afastar, sem tirar os olhos do outro. O Homem Mais Novo levara a melhor, mas preferiu encerrar por ali. Com um gesto rápido, levantou Charlie do chão e o empurrou para dentro de um dos prédios.

– É melhor sair da rua, garoto.

O prédio era antigo e mal iluminado. O Homem Mais Novo o segurara pela mão, puxando-o escada acima.

– A-aonde está me levando? — Charlie questionou, tentando afastar da mente todas as histórias de crianças que não se deram nada bem ao ficarem sozinhas com estranhos.

– Relaxa  —  respondeu, com um sorriso irônico, mostrando dentes amarelados, na certa imaginando o que já se passava pela cabeça de Charlie —  Vamos até meu apartamento e você vai me contar como chegou nesses lados.

Eles pararam em frente a porta do apartamento 301 ou 302, Charlie não conseguiu distinguir bem, pois a luz do corredor era fraca. O homem girou a chave na maçaneta. A tinta marrom da porta descascava, o menino notou.

– Entre.

O apartamento era um pouco melhor. Era pequeno, um único cômodo; cozinha, sala e quarto no mesmo lugar, mais uma outro que estava fechado, o banheiro, obviamente. A tinta branca das paredes tinha manchas e os moveis eram escassos: pia, fogão, uma geladeira pequena, duas cadeiras. Não havia cama, apenas um colchonete estendido no chão. Entretanto, o lugar parecia, surpreendentemente, limpo.

– Com fome?

Só depois da pergunta, Charlie se dera conta que estava realmente faminto. Ele respondeu que sim, com um aceno tímido de cabeça.

O homem abriu a pequena geladeira, tirando de lá um pacote de pão de forma, já pela metade, um pote de manteiga e uma garrafa de refrigerante. Charlie não esperou convite e foi se servindo.

– Qual a sua história, garoto? Fugiu de casa ou o quê?

– Minha Mãe me abandonou — Charlie respondeu, após engolir um pedaço grande de pão.

– Você não parece um menino de rua — o Homem Mais Jovem não estava acreditando.

– Não sou — Charlie já terminava seu sanduíche — Quero dizer, não era até hoje.

Charlie não gostava de conversar, muito menos sobre seus problemas, mas o homem havia o salvado de apuros e agora o alimentara. Achou, então, que deveria contar-lhe tudo.

Após o relado de Charlie, o Homem Mais Novo parecia pensativo. Abriu a pequena janela e ascendeu um cigarro, que passou a fumar, soltando baforadas lentas. Charlie olhou para a porta fechada e a abriu. O banheiro era muito estreito, mas a bexiga de Charlie estava ansiosa demais ara deixa-lo reparar no cômodo.

Quando retornou a cozinha/ sala/ quarto, o Homem Mais Novo ainda fumava seu cigarro:

– No que está pensando? —  Com toda a sua timidez, Charlie também não gostava de questionar quem quer que fosse, mas o silencio do outro o incomodava.

– Sabe, garoto, meus pais também me abandonaram — respondeu, enfim — Fui deixado em um orfanato. Nunca os conheci. Era nisso que estava pensando. Gostaria de reencontrá-los.

– Eu não sei se quero ver minha Mãe, depois dessa. E-eu estou raiva dela.

O Homem Mais Novo nada disse, apenas continuou tragando seu cigarro.

– Por que você quer encontrar seus pais?

Silêncio.

– Para saber por que lhe deixaram?

O Homem soltou um suspiro profundo, junto com a fumaça.

– Isso não importa mais — afirmou.

– Por que, então? — Charlie não continha a curiosidade.

– Para matá-los.

Por um momento, Charlie achou ter ouvido errado

– Para m-mat…

– Isso. Pelo que fizeram, é o que merecem.

Mais um período de silêncio se fez. Charlie encheu um copo de refrigerante e ingeriu o liquido lentamente, lembrando que a Mãe só o deixava tomar esse tipo de bebida em ocasiões especiais, como seu aniversário. O Homem Mais Jovem continuava absorto em seu cigarro.

– O que o senhor faz? — Charlie tentava iniciar uma conversa. Nunca imaginara que algum dia o silêncio lhe pareceria incomodo.

– Eu faço muitas coisas, garoto. Como, bebo, durmo, fumo cigarros como este…

– Eu quero dizer, em que o senhor trabalha?

– Só uns biscates…

– Mas, fazendo o quê?

– Faxina, acho que podemos dizer assim.

– Tipo uma diarista?

O Homem Mais Novo deu gargalhada, rápida e seca:

– Outro tipo de faxina.

– Como assim?

– Ok, ok, se você quer tanto saber. Vamos colocar assim: você não gosta de alguém, essa pessoa o atrapalha, o prejudica. Eu removo essa pessoa da sua vida. Uma pequena faxina, mediante a pagamento, claro.

– Você está dizendo que mata pessoas, não é? Como Charles Bronson em The Mechanic?

– Estou só começando nesse negócio, garoto.

Charlie estava mais admirado do que assustado. Nunca imaginara que algo assim pudesse existir no mundo real. Entretanto, aquele dia já estava muito estranho mesmo. Bem, ele não parecia tão bem-sucedido como Bronson, mas talvez isso fosse exigir demais da realidade.

Charlie continuo tomando seu refrigerante e não fez mais perguntas. Sua mente vagueava entre pensamentos, quando uma ideiazinha surgiu, sorrateira, se infiltrando. Não, não podia. Seria errado. Seria errado, não é? Mesmo assim, a ideia lhe fazia sorrir. Remoção de problemas. Ele tinha alguém que o prejudicava, talvez essa fosse a solução.

– Tem uma pessoa que me atrapalha. Você daria um jeito?

O Homem Mais Jovem riu.

– Posso pagar.

O Homem não rira mais. Havia percebido que Charlie falava sério.

– Eu tenho isso — o menino havia tirado uma carteira vermelha e brilhante o Bolso. Ele a abriu e mostrou algumas notas esticadas dentro dela. A mesada que a Mãe lhe dera no dia anterior.

– Não é suficiente.

– Ela tem joias em casa.

O homem sorriu de maneira fria.

– E o que me impediria de mata-lo também? Afinal, é só um moleque. Que garantia tenho que mais tarde não vai abrir o bico para algum parente ou para a polícia?

– Nada o impede — Charlie estava resoluto — Também não tenho garantias, só minha palavra. Mesmo assim, sei que não irá me matar.

Por mais estranho que soasse aquilo, era verdade. Ele não mataria o menino. Não que ainda lhe restasse algum resquício de moral ou algo do tipo. Não, havia recomeçado sua vida naquele mundo e agora não tinha volta. Faria o que fosse pago para ser feito. Porém, sabia o que era ser uma criança só, num mundo de adultos cruéis. Por isso ajudará aquele menino. Não pensara muito. Só não gostara do que viu e resolvera intervir. E ele entedia muito bem o garoto. A sensação de abandono. A solidão. A Raiva.

– Tudo bem, garoto — respondeu o Homem Mais Novo — Eu mato a sua Mãe, mas só porque sou um cara legal.

Não havia a necessidade de nenhum plano mirabolante. Charlie contara que sua casa ficava em uma rua tranquila, por isso não tinham câmeras ou cães; até mesmo o muro não era tão alto. Ficou combinado que os dois partiriam de moto, à noite. O Homem pularia o muro e Charlie apenas esperaria. O assassino arrombaria a porta, faria o serviço e partiria com as joias que a Mãe guardava no quarto. Charlie, então, entraria na casa e aguardaria o amanhecer, apenas aí, faria uma ligação para a polícia, como se ele tivesse acordado pela manhã e encontrado a Mãe Morta. Eles concluiriam que o assassinato ocorreu por motivo de roubo.

O único empecilho era que Charlie não sabia seu endereço exato, sabia o bairro, mas não a rua ou o número da casa. Teve uma ideia de repente. Pegou mais uma vez a carteira no bolso e passou a vasculha-la.

– HÁ! — disse, triunfante, ao puxar de um dos compartimentos um pequeno pedaço de cartolina plastificado — Meu cartão da biblioteca. Tem meu endereço nele — explicou, ao entregar o cartão ao Homem.

Já era hora de pôr o plano em prática.

Agachado atrás de um poste, Charlie viu o Homem Mais Novo pular habilmente o muro de sua casa. A rua toda dormia. Charlie levantou-se de seu esconderijo. Ele não queria mais esperar. Desejava ver a Mãe, antes que tudo terminasse. Com muita dificuldade conseguiu escala o muro, que era um verdadeiro Everest para o pequeno menino de seis anos. Lamentou exatamente a sua idade. “Pra que um garoto da sua idade quer a chave de casa? Você não vai sair sem mim”, dissera-lhe a Mãe, no ano passado.

Como o combinado, o Homem Mais Novo havia arrombado a porta da frente. Charlie parou em sua sala e, por um momento, não conseguiu ouvir um único som. Subiu as escadas para o andar superior, onde ficavam seu quarto e o de sua Mãe. Subia devagar, apurando os ouvidos. Só então escutou algo. Era a voz de sua Mãe:

– Não — ela não gritava, apenas falava, como em uma conversa normal — Pare.

Os sons que se seguiram Charlie não conseguiu identificar muito bem. As molas da cama. Respiração ofegante. Um baque. Charlie correu até o quarto. Seria tarde?

A porta estava escancarada e a luz do abajur, na cabeceira da cama, estava acesa. Charlie pode enxergar toda a cena. A Mãe estava parada ao lado da cama. Quando Charlie entrou no cômodo, ela se virou. Havia sangue em sua camisola cor-de-rosa. Sobre a cama, o Homem Mais Novo jazia sem vida, sua própria faca cravada no peito.

– Charlie, você conseguiu — sua voz era calma — Eu sabia que conseguiria.

Charlie ficou perplexo, não esperava por aquilo. Ela não acreditaria que chegara sozinho e nada tinha a ver com o Homem Morto. Teve que pensar rápido:

-Mãe, me perdoe. É que eu fiquei com muita raiva. Aí conheci este homem, ele disse que matava por dinheiro.

A Mãe de Charlie ajoelhou-se diante do filho, lágrimas começaram a minar de seus olhos.

– Charlie, você contratou este homem para me matar?

– Sim, Mãe. Me perdoe.

Agora é que ela iria querer se livrar dele para sempre.

– Quer dizer que você falou com ele, negociou o pagamento e tudo mais?

– Sim, Mamãe.

A Mãe o abraçou com força. Charlie também não esperava por isso. Achava que a Mãe ficaria furiosa, horrorizada, que gritaria com ele e o abandonaria outra vez. Mas, ela não o fez. Ela nunca mas o deixaria:

– Ah, Charlie, estou tão orgulhosa! Meu garotinho tímido andando sozinho pela cidade e até negociando com um tipo tão perigoso! Psicólogos inúteis, eu sabia que daria certo! Você está pronto para ser grande no mundo!

Charlie sorriu.

Você pode ouvir o conto no Desleituras, podcast do Teatro Escuro do Pensador Louco.

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