Dia desses, estava assistindo ao classicão Rashomon e achei que a gente devia tirar um tempinho para apreciar o quão maravilhoso era Toshiro Mifume.
Toshiro Mifune, protagonizou muitas das grandes obras de Akira Kurosawa, como Os sete samurais, se tornando uma das maiores nomes do cinema japonês. No entanto, Mifune nasceu na China, na província de Shandong, que na época estava sob ocupação japonesa, em 1 de abril de 1920. Para preservar o controle da região, o governo japonês mantinha uma grande guarnição e também incentivava os cidadãos japoneses a se mudarem para lá, com promessas de trabalho. Os pais de Toshiro, missionários metodistas, eram alguns desses japoneses. Assim, Mifune cresceu com mais dois irmãos mais novos em Dalian, Liaoning, e, dos 4 aos 19 anos de idade, na Manchúria. Durante a adolescência, Mifune trabalhou na loja de fotografia de seu pai, mas, como cidadão japonês, foi convocado para a divisão de Aviação do Exército Imperial Japonês, onde serviu na unidade de Fotografia Aérea durante a Segunda Grande Guerra.
Mifune não sonhava em ser ator, quando começou a trabalhar com cinema. De volta da guerra, não quis seguir na carreira militar, onde chegou ao posto de sargento. Um de seus amigos, que trabalhava na Toho Productions, o convidou a tentar uma vaga por lá. Mifune acabou sendo aceito para uma posição como assistente de câmera. Ele era fascinado por câmeras e queria ser fotógrafo, mas a falta de grana o fez participar de uma grande audição que o estúdio estava realizando para descobrir novos rostos. Na época, após uma greve, a Toho havia perdido muitos de seus astros. Mifune foi escolhido, juntamente com outros 48 jovens, entre cerca de 4 mil candidatos.
Seu primeiro filme era intitulado Shin baka jidai (1946), mas, apesar de pouco lembrado, serviu para chamar a atenção do, já na época, prestigiado, Kurosawa. A atriz Hideko Takamine (que fez cerca de 181 filmes, desde a década de 30, e trabalharia com Mifune em O homem do riquixá, em 1958), foi quem chamou Kurosawa para dar uma olhada no talentoso jovem, de ar austero e olhar intenso. Mais tarde, Kurosawa escreveu que entrou na audição para ver \”um jovem cambaleando pela sala em um violento frenesi … era tão assustador quanto assistir uma fera tentando se libertar. Fiquei paralisado\”. Quando Mifune, exausto, terminou sua cena, sentou-se e deu aos juízes um olhar ameaçador. \”Eu sou uma pessoa que raramente se impressiona com atores\”, continuou o diretor \”Mas no caso de Mifune, fiquei completamente empolgado.\”
A parceria Mifune/Kurosawa começou dois anos depois, com O anjo embriagado, e renderia mais 14 filmes, como Trono manchado de sangue (1957), adaptação de Macbeth de Shakespeare; O Idiota (1951), adaptação de Dostoiévski; Yojimbo (1961), Viver (1952), e os já citados Os sete samurais (1954) e Rashomon (1950).
Depois de tantos filmes e anos de amizade, Mifune e Kurosawa brigaram lá pela metade da década de 60. Durante as filmagens de O Barba-Ruiva, eles se desentenderam e nunca mais voltariam a trabalhar juntos. Não sabemos o motivo da briga, mas vale lembrar que Kurosawa não era lá muito democrático (acho que poucos diretores são), tanto que tinha o apelido de Imperador, então, ao que parece o diretor e o ator discordavam a respeito da interpretação do personagem e, agravando isso, o filme levou cerca de dois anos para ser feito e, durante esse tempo, Mifune não podia trabalhar em outras produções.
Conta-se que foi sugerido a Kurosawa que Mifune estrelasse Ran (1985). Sua resposta foi: \”Eu não trabalharia com ninguém que aparecesse em produções como Shogun\”(referia-se a co-produção EUA/Japão, estrelada por Richard Chamberlain e Mifune).
Contudo, da parte de Mifune, não parecia haver ressentimentos, ao menos não em 1981, quando esteve no Brasil para filmar um comercial, e declarou que \”o maior orgulho de minha carreira são os filmes que fiz com Kurosawa\”. Por dois filmes com Kurosawa, Mifune ganhou prêmios no Festival de Veneza por sua atuação, em 1961 por Yojimbo e em 1965 por O barba ruiva. O ator também trabalhou com outros importantes diretores japoneses, como Kenji Mizogushi, em A vida de Oharu (1952) e Kajirō Yamamoto, em Ai to nikushimi no kanata e (1951) e Aika (1951).
Depois do reconhecimento no Japão, a fama de Mifune chegou ao Ocidente por meio de festivais internacionais de cinema. Rapidamente seu rosto se tornou símbolo do Japão, sendo convidado a atuar em filmes hollywoodianos, onde trabalhou com diretores como John Frankenheimer (Grand Prix, 1966) e Steven Spielberg (1941, de 1979), mas não escapou de representar os estereótipos de samurais e militares nipônicos em diversas outras produções.
Em 1963, Mifune passou a produzir filmes para o cinema e também para a televisão japonesa e chegou a dirigir um filme: O Legado dos 500 Mil, de 1963. Ao todo, Toshiro Mifune participou de 130 filmes e foi premiado por 60 deles.
Lembra do concurso de jovens atores da Toho? Uma das 32 atrizes escolhidas durante o evento foi Sachiko Yoshimine, vinda de uma família respeitada de Tóquio. Mifune e Sachiko se apaixonaram, mas ele precisou da ajuda do diretor Senkichi Taniguchi e também do diretor Kurosawa, para convencer a família da moça a permitir o casamento, que aconteceu em fevereiro de 1950.
Eles tiveram dois filhos (Shiro e Takeshi, nascidos em, respectivamente, 1950 e 1955) e foram casados até 1995, quando Senkichi faleceu em decorrência de um câncer. Na época Mifune já se encontrava com a saúde fragilizada, devido a problemas cardíacos, e havia se retirado da vida pública. O ator morreu dois anos depois, em 24 de dezembro de 1997, num hospital de Tóquio, aos 77 anos.
Mifune tinha mais uma filha, que nasceu em 1982, fruto de um relacionamento extra-conjugal com a também atriz Mika Kitagawa, que trabalhou com ele em filmes como O Último Samurai (1969), Emboscada (1970) e O Tigre de Papel (1975). Aliás, Mika Mifune e Shiro Mifune também são atores.