Direção: Karim Aïnouz

Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Fernanda Montenegro, Gregorio Duvivier, Bárbara Santos, Maria Manoella, Flávia Gusmão, Antônio Fonseca, Flavio Bauraqui, Nikolas Antunes e Cristina Pereira

Brasil, 2019

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O quanto uma sociedade machista e patriarcal pode aniquilar sonhos e destruir a vida e o espirito de uma mulher? A Vida Invisível, filme brasileiro escolhido para pretear uma indicação ao Oscar de Filme Estrangeiro no ano que vem, reflete um passado que encontra similaridades ainda hoje.

(Aviso: spoilers abaixo)

Baseado no livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, A Vida Invisível tem direção de Karim Aïnouz, de Madame Satã e O Céu de Suely. O filme acompanha a trajetória de duas irmãs no Rio de Janeiro dos anos 50. Guida (Julia Stockler), de 20 anos, e Eurídice (Carol Duarte), de 18, são inseparáveis. As duas jovens são fruto de um lar conservador. O pai (Antônio Fonseca) é um português tradicional e a mãe (Flávia Gusmão), vive à sombra do marido.

Cada uma das irmãs tem um sonho, embora esses sonhos sejam muito diferentes. Guida quer viver um grande amor, já a paixão de Eurídice é o piano, seu sonho é estudar música em um conservatório e se tornar pianista profissional. Entretanto, o machismo da sociedade que as cerca não apenas separa as irmãs, como vai reduzindo esses sonhos a pó.

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Apaixonada por um marinheiro grego (Nikolas Antunes), Guida sabe que seu pai jamais aprovaria o relacionamento e, por isso, decide fugir, com a intensão de se casar na Europa. A fuga da irmã mais velha provoca a ira do pai, o que adia o sonho da caçula de estudar na Áustria.

Desiludida e grávida, Guida retorna ao Brasil, onde é rejeitada pelo pai, em nome da tal honra da família, afinal, mulheres não podem errar jamais. Mas, virar as costas para a filha e o vindouro neto não é a maior crueldade que pai comete. Ele mente que Eurídice está vivendo na Europa e tem vergonha da irmã.

Enquanto isso, Eurídice se casa com Antenor (Gregório Duvivier). Como fica claro pelo ar frustrado da moça, amor não foi a razão do casamento. Seu plano, já que não precisa mais viver em função do pai, é evitar uma gravidez e realizar seu sonho e se tornar uma pianista profissional. Não é o que acontece.

O machismo de Antenor é bem mais sutil do que o do pai de Guida e Eurídice. Ele é um sujeito pacato, não é do tipo que esbraveja. Mas, quando ele faz sexo com Eurídice na noite de núpcias, não demonstra nenhuma cautela ou afeto com a esposa virgem (falta de consideração representada pelo close up no pênis de Antenor, que surge de supetão na tela); quando a jovem fala em estudar música, ele diz que ela já sabe tocar, pra quer aprender mais? E quando ela engravida, ele a chama de egoísta, por não se empolgar, por relutar em adiar mais uma vez seu sonho.

Guida e Eurídice seguem por caminhos diferentes, mas não desistem uma da outra. Guida segue escrevendo para a irmã, na esperança do pai se compadecer e entregar as cartas ao destinatário. Ela se conforta na ideia de que a irmã realizou seu sonho. Eurídice contrata um detetive (Flavio Bauraqui) para achar a irmã perdida e se consola sabendo que a irmã deve estar muito feliz com seu amor grego, pois não retornou ao Brasil ou a procurou.

Passam por situações distintas, as irmãs sofrem com variações de um mesmo machismo e vivem vidas invisíveis. Guida, invisível ao mundo, vivendo às margens da sociedade; Eurídice vive com mais conforto, mas seus sentimentos e vontades são invisíveis dentro de sua casa.

Guida dá a luz em um hospital público e cria o filho sozinha, trabalhando em um estaleiro. O machismo que Guida sofre é muito mais escancarado. Desde o pai que a despreza por \”carregar um bastardo\”, os homens que a assediam ou mesmo as burocracias do estado, que a impedem de viajar com o filho, sem a autorização do pai.

No caso de Eurídice, o machismo aparece de forma menos óbvias, mas que vão minando suas forças. Está no pai que decide que ela deve ser \”protegida\” da presença da irmã. Está no marido que trata seu sonho de realização profissional com condescendência, como se fosse algo frívolo, que usa a filha do casal para provocar um sentimento de culpa e fazê-la desistir; no médico que diagnostica sua gravidez e quebra o sigilo da profissão ao contar para Antenor; nas pessoas ao redor dela que acreditam que a única emoção possível para uma mulher grávida é a alegria irrestrita. Afinal, o que mais uma mulher pode desejar, além de ter filhos?

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A única ajuda que Guida recebe é de outra mulher: Filomena (Bárbara Santos). Mulher negra e sem filhos, que cuida de crianças da comunidade em que vive, enquanto as mães trabalham. Filomena é responsável por mostrar a Guida que ela não precisa se submeter a um homem para sobreviver. Ela tem inteligência e força suficiente trabalhar e criar seu filho sozinha. Aliás, registrei a frase da personagem, quando Guida volta para casa, mais uma vez, decepcionada, sem encontrar nenhum homem que a agrade e questiona se Filó não se sente sozinha: \”cansei de ser divertimento para outros\”, responde.

No fim das contas, nenhuma das irmãs realizou seu sonho inicial (encontrar um grande amor e ser uma grande pianista). Mas, por mais que sua realidade fosse mais dura, Guida ainda pôde encontrar sua própria força, enquanto Eurídice foi se conformando e apagando, a ponto de destruir sua própria identidade.

Quando Eurídice queima as roupas de sua irmã e seu próprio piano, é uma forma de deixar sua irmã e seus sonhos no passado. Essa perda de identidade é consolidada na cena seguinte, quando Eurídice é levado ao hospital, e, em um plano desfocado, é possível vislumbrar suas queimaduras, enquanto um médico discute com o marido os procedimentos de seu tratamento.

Karim Aïnouz dá um tom intimista à narrativa, o que é um excelente contraponto ao uso de alguns recursos novelescos, como uma troca de identidades e um quase-reencontro, o que não deixa o filme cair no melodrama barato.

Enquanto isso, a fotografia de Hélène Louvart é granulada e de cores vivas, mas não para indicar alegria; essas cores são marcadas por sombras e mostram um Rio de Janeiro quente, desconfortável e sufocante.

Por falar nas atuações, Carol Duarte é precisa ao construir essa mulher que vai se anulando mais e mais, porém é Júlia Stockler quem domina filme. Da alegria da jovem que ingenuamente acredita que será perdoada pelo pai, aos medos e arrependimentos de mãe, e a capacidade de adaptação da mulher que precisa aprender a se defender, a atriz impressiona. Além disso, a química entre as duas é perfeita, o que torna todo o sofrimento das irmãs ainda mais crível. Difícil não se comover com esse drama de separação.

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Vale destacar, claro, Fernanda Montenegro, que aparece bem pouco, mas é suficiente para deixar os momentos finais do filme mais tocantes. Também Bárbara Santos como Filó, que surge como uma figura dura, mas aos poucos vai revelando um lado empático e afetuoso, e Gregório Duvivier como Antenor, que usa seu lado cômico para evitar a caricatura machista, entregando esse marido meio patético, incapaz de apoiar a esposa, não porque é mal, mas porque acredita que são assim que as coisas funcionam: ele trabalha, ela cuida da casa e da família.

Aliás, é interessante notar como esse machismo é mostrado de forma realista, sem maniqueísmo. O vilão não um homem especifico, mas o patriarcado. Tanto Antenor quanto o pai das irmãs fazem e dizem coisas terríveis, mas nem mesmo o percebem (note a expressão de surpresa misturada à culpa, quando este último vê a revolta da filha mais nova ao descobrir que ele escondera que a irmã havia voltado para o Brasil).

Eles não são monstros, são homens, como tantos pais e maridos por aí, mesmo nos dias de hoje, que aprenderam que decidir o destino das mulheres de suas vidas é normal, que é preciso negar inseguranças e se autoafirmarem todo o tempo. Só a destruição do patriarcado pode realmente por fim a essa ideia.

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A previsão de estreia de A Vida Invisível é 31 de outubro

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