… E o vento levou fora da HBO Max: censura?
Recentemente, o filme … E o vento levou virou centro de uma polêmica, pois a HBO Max o retirou de sua grade. Lançado em 1939, o filme de Victor Fleming é uma adaptação do romance histórico de Margaret Mitchell. No entanto, o épico, vencedor de 8 estatuetas do Oscar, incluindo melhor filme, também vem ao longo dos anos sendo muito criticado por sua representação estereotipada dos negros e modo heroico como pinta a América escravista.
Muita gente correu para apontar que estavam “censurando” o filme, mas, no fim das contas, … E o Vento Levou foi devolvido à grade, com um adendo: uma introdução por Jacqueline Stewart, professora de estudos de cinema da Universidade de Chicago e diretora da organização sem fins lucrativos, Black Cinema House, onde ela explica o complexo legado da obra, de grande valor cultural, porém com um problemático retrato do sul dos Estados Unidos, antes da Guerra de Secessão.
Ao meu ver, a ação da HBO foi muito correta. ... E o vento levou é um dos meus filmes favoritos. História emocionante, grandes atuações, qualidade técnica impressionante… tudo que se espera de um grande épico. Contudo, o filme é fruto da época em que foi realizado e não tem como fechar os olhos para o racismo que o permeia. Por outro lado, impedir sua exibição não acrescenta nada ao debate. É apenas fingir que o problema não existe. Mantê-lo na grade, porém com os apontamentos da professora, é muito mais produtivo.
Durante os protestos Black Lives Matters, estátuas de escravocratas foram derrubadas ou pichadas. O que eu acho ótimo, mas com filmes, séries, músicas, livros, etc, não creio que dê para aplicar a mesma lógica. Estátuas em espaços públicos servem para homenagear; quem passa por elas, muitas vezes, nem sabe de quem se trata, só absorve que aquela deve ser uma figura histórica importante. Já com o cinema, e a arte em geral, acaba sendo um retrato de uma época, e pode ser utilizado de forma crítica, propondo reflexões. Além disso, apagar … E O Vento Levou, significaria apagar também a história de Hattie McDaniel, a primeira artista negra a ser indicada e a receber um prêmio Oscar.
Você conhece Hattie McDaniel?
Hattie McDaniel interpretou a escrava Mammy, que acompanhava a protagonista Scarlett O’Hara (Vivien Leigh). Hattie foi uma mulher e tanto. Por isso, resolvi contar um pouco sobre ela por aqui. Ela não deve jamais ser esquecida.
Origens
Hattie nasceu em Wichita, no estado do Kansas, em 10 de junho de 1895. Seu pai era pastor batista, Henry McDaniel, e a cantora gospel Susan Holbert. Henry era filho de uma mulher escravizada em um grande latifúndio na Virgínia e nasceu sob a condição de escravo. Ele lutou no Exército da União durante a Guerra Civil Americana.
Do gospel ao vaudeville
Hattie McDaniel era a mais nova de treze irmãos. Em 1910 ela foi a única negra a participar do evento Women\’s Christian Temperance Movement, onde recitou um poema de sua própria autoria e ficou com o primeiro lugar. Por essa época, Hattie já havia decidido que seguiria carreira artística.
Juntamente com dois de seus irmãos, Otis e Sam, ela formou um grupo de vaudeville no qual atuava, compunha e cantava. Nesses espetáculos, sua veia cômica e ousadia também se destacava. De acordo com sua biógrafa Jill Watts, em Hattie McDaniel: Black Ambition, White Hollywood , ela “atuava com o rosto pintado de branco, algo que nenhuma mulher fazia na época”, contou Watts.
Em 1916, Otis faleceu, o que desestruturou o grupo. Mas, em 1920, Hattie conseguiu uma boa oportunidade como cantora, se juntando ao elenco da peça teatral Melody Hounds. Cinco anos depois, ela se tornaria a primeira mulher afro-americana a cantar no rádio, começou se apresentar na estação KOA, em Denver. Dessa forma, ela também gravou várias canções, muitas de sua própria autoria. Hattie também fez turnês em várias cidades estadunidenses.
A grande depressão
Como atriz, a maioria dos personagens que Hattie McDaniel interpretava eram conseguidos através da Theatrical Owners Booking Association, uma associação donos de teatro negros. No entanto, em 1929, ocorreu a queda da bolsa de Nova York, o que marcou o início da Grande Depressão, e fez com que a associação fechasse as portas, deixando Hattie com muitas dificuldades financeiras. Ela então rumou para Milwaukee e é a própria quem conta o que aconteceu:
“Cheguei lá destruída”, narrou em entrevista ao The Hollywood Reporter, em 1947. “Alguém me disse que no hotel Suburban Inn de Sam Pick procuravam uma assistente para o banheiro feminino. Saí correndo e consegui o trabalho. Uma noite, quando todos os artistas haviam ido embora, o gerente pediu que algum voluntário subisse no palco. Pedi uma canção aos músicos e comecei a cantar. Não voltei a trabalhar nos banheiros. Durante dois anos, protagonizei o espetáculo do lugar.”
Chegando a Hollywood
Para todos que se destacavam na indústria do entretenimento durante os anos 30, procurar um espaço em Hollywood era o caminho lógico. E foi o que Hattie McDaniel fez. Em 1931, ela se mudou para Los Angeles com os irmãos Sam, Etta e Orlena. No entanto, assim como todo o EUA, Hollywood estava longe de ser amigável com pessoas negras.
Na época, o Código Hays, um sistema de autorregulação dos estúdios, ainda estava em pleno vigor. As regras moralistas estavam cheias de proibições quanto a temas de filmes, linguajar empregado e até a intensidade dos beijos. E, surpreendendo absolutamente ninguém, também era bem racista, proibindo a representação de romances entre brancos e negros e também que estes últimos recebessem papéis agressivos.
Dessa maneira, atores e atrizes afrodescendentes ocupavam pequenos papéis de serviçais, como domésticas, motoristas, garçons, etc, ou apareciam como figurantes. Com frequência, esses artistas não eram nem mesmo creditados. Como ganhava muito pouco atuando, Hattie tinha que trabalhar como empregada doméstica ou cozinheira para se manter.
Um de seus irmãos, Sam, trabalhava em um programa de rádio chamado The Optimistic Do-Nut Hour e acabou conseguindo uma aparição para ela. Hattie tornou-se muito popular na rádio, porém ainda ganhava muito mal e não poderia abandonar a posição de doméstica.
Pelo início da década de 1930, Hattie conseguiu vários papéis em filmes, contudo, não era creditada na maioria deles. Ao todo, no decorrer de sua carreira, ela participou de mais de 300 filmes, porém seu nome aparece em apenas cerca de 80 deles.
Sob a direção de John Ford
Em 1934, John Ford notou Hattie. Ele gostava do seu estilo sarcástico e a colocou na comédia Judge Priest, estrelado por Will Rogers. Era a primeira vez que Hattie atuava em um dos papéis principais em um filme, o que voltaria a ocorrer pouquíssimas vezes em toda a sua carreira. Hattie e Rogers ficaram amigos durante as filmagens, e ele costumava dizer que o motivo do filme ter feito sucesso era ela.
Aliás, lá pela metade da década de 1930, Hattie fez amizade com várias celebridades, como Joan Crawford, Bette Davis, Shirley Temple, Henry Fonda, Ronald Reagan, Olivia de Havilland e Clark Gable. Com os dois últimos ela trabalharia junto em …E o Vento Levou.
Fora dos padrões
Hettie McDaniel desafiava padrões não apenas na indústria, mas também em sua vida pessoal. Ela teve quatro casamentos que duraram pouco, ficando viúva no primeiro e encerrando os outros três com divórcios. Hattie nunca teve filhos.
Os comentários na alta-sociedade hollywoodiana a incluíram nos chamados “círculos de costura”, como chamavam as lésbicas/bissexuais de Hollywood, onde figuravam também estrelas como Joan Crawford, Greta Garbo, Myrna Loy, Barbara Stanwyck e Marlene Dietrich.
Mammy
A competição para o papel de Mammy foi bastante acirrada, tanto que até a primeira-dama Eleanor Roosevelt escreveu para o produtor do filme, David O. Selznick, pedindo que sua empregada ficasse com a personagem. Mas, Selznick gostou de Hattie exatamente porque ela não encarnava nenhuma das qualidades de uma serviçal abnegada: era sarcástica, altiva e atrevida. Inclusive, se recusou a proferir a palavra com “n” no filme.
Apesar de inserida no clichê de empregada que não tem vida própria, Mammy ainda representa uma certa ruptura na época, pois não era dócil ou complacente; muito cínica e petulante, a personagem era a única que conseguia colocar algum limite na voluntariosa Scarlett.
De fora da estreia
Em 15 de dezembro de 1939, cerca de 300.000 pessoas foram conferir a estreia de … E o vento levou no teatro Loew\’s Grand Theatre, em Atlanta. Hattie McDaniel não pode ser convidada. A lei Jim Crow, que proibia negros em espaços públicos, ainda estava em vigor no Sul.
Parte da comunidade negra estadunidense criticou o fato de Hattie aceitar um papel em um filme que consideravam ser um insulto aos afrodescendentes. Porém, a atriz dizia que preferia “interpretar uma criada por 700 dólares a ser uma por 7”.
Oscar
A atuação de Hattie McDaniel como Mammy foi muito elogiada, muitos críticos a colocavam no mesmo patamar da estrela Vivien Leigh. No Los Angeles Times, foi dito que seu trabalho era “digno dos prêmios da Academia”. Bem, Selznick pegou a dica e a inscrever ao prêmio de atriz coadjuvante, juntamente com Havilland, assim como Gable e Leigh, que concorreram nas categorias principais.
Em 29 de fevereiro de 1940, quando Fay Bainter leu o nome Hattie McDaniel na noite do Oscar, 12 anos depois da criação do prêmio, pela primeira vez uma mulher negra subia ao palco. Para participar da cerimônia, Hattie precisou de uma autorização especial, pois o prédio proibia a entrada de negros, a menos que fossem empregados. Mesmo assim, a atriz não pode compartilhar a mesa com o restante da equipe, tendo que ficar nos fundos do salão do teatro.
“Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, membros da indústria cinematográfica e convidados de honra: este é um dos momentos mais felizes de minha vida, e quero agradecer cada um de vocês que me selecionaram a um dos seus prêmios por sua gentileza. Isso me fez sentir muito, muito humilde; e sempre o erguerei como um farol para qualquer coisa que eu possa fazer no futuro. Espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para a minha raça e para a indústria cinematográfica. Meu coração está pleno demais para lhes dizer como me sinto, e posso dizer obrigada e que Deus os abençoe.” discursou, com voz embargada.
Somente mais de 20 anos depois, outro negro voltaria a ser premiado: Sidney Poitier, que recebeu a estatueta em 1964, por Uma Voz nas Sombras. E, tantos anos depois, a lista de atores e atrizes afrodescendentes premiados é bem pequena. Além de Hattie e Poitier, tivemos:
- Louis Gossett Jr. – Melhor Ator Coadjuvante por A Força do Destino, de 1982;
- Denzel Washington – Melhor Ator Coadjuvante por Tempo de Glória, de 1989
- Whoopi Goldberg – Melhor Atriz Coadjuvante por Ghost – Do Outro Lado da Vida, de 1990
- Cuba Gooding Jr. – Melhor Ator Coadjuvante por Jerry Maguire – A Grande Virada, de 1996
- Denzel Washington – Melhor Ator por Dia de Treinamento, de 2001
- Halle Berry – Melhor atriz por Última Ceia, de 2001
- Jamie Foxx – Melhor Ator por Ray, de 2004
- Morgan Freeman – Melhor Ator Coadjuvante por Menina de Ouro, de 2004
- Forest Whitaker – Melhor Ator por O Último Rei da Escócia, de 2006
- Jennifer Hudson – Melhor Atriz Coadjuvante por Dreamgirls – Em Busca de um Sonho, de 2006
- Mo’Nique – Melhor Atriz Coadjuvante por Preciosa – Uma História de Esperança, de 2009
- Octavia Spencer – Melhor Atriz Coadjuvante por Histórias Cruzadas, de 2011
- Lupita Nyong’o – Melhor atriz coadjuvante por 12 Anos de Escravidão, de 2013
- Mahershala Ali – Melhor Ator Coadjuvante por Moonlight, de 2016
- Viola Davis – Melhor atriz coadjuvante por O Limite entre nós, de 2016
- Mahershala Ali – Melhor Ator Coadjuvante por Green Book, de 2019
- Regina King – Melhor atriz coadjuvante por Se a Rua Beale Falasse, de 2019
Quando ganhou seu prêmio na cerimônia de 2010, Mo’Nique relembrou Hattie: “Quero agradecer Hattie McDaniel por suportar tudo o que teve que suportar para que eu não tivesse de fazê-lo.”
Pós-Oscar
Apesar desse reconhecimento, um Oscar não garantiu a Hettie McDaniel uma carreira digna de seu talento. Ela continuou ganhando papéis de serviçais coadjuvantes, como no infame A Canção do Sul, até hoje uma das manchas que a Disney tenta apagar da sua história.
Em seus anos finais, a atriz reencontrou o sucesso no rádio. No ano de 1947, ela tirou de Bob Corley, uma ator branco que imitava mulheres negras, a personagem título da comédia Beulah. Em 1951, ela também foi escalada para a versão para a TV do programa, porém faleceu em 1952, aos 57 anos, vítima de câncer de mama.
Hettie deixou dois pedidos em seu testamento: ser enterrada no cemitério Hollywood Forever e que seu Oscar fosse entregue à Universidade Howard. Nenhum dos dois foi realizado. Ela foi enterrada no campo de Angelus-Rosedale, pois Hollywood Forever não admitia negros.
Cerca de 3000 pessoas, entre familiares, fãs e representantes da indústria do entretenimento compareceram ao funeral. Muitos atores e atrizes que haviam trabalhado com Hattie enviaram flores, como Clarke Gable, mas James Cagney foi o único astro branco a prestar sua homenagem pessoalmente.
Em 1999, Tyler Cassity, o novo dono do Hollywood Forever, quis corrigir a injustiça passada, propondo à família de McDaniel que ela fosse enterrada no cemitério. Os parentes, no entanto, não quiseram perturbar seus restos mortais depois de tantos anos, recusando a oferta. Então, o Hollywood Forever decidiu construir um memorial dedicado a Hattie.
Quanto ao segundo desejo, ninguém sabe ao certo o que aconteceu com o prêmio da Academia. Alguns afirmam que foi jogado no rio Potomac durante as revoltas ocorridas após o assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968. Outros, acreditam que o Oscar está simplesmente perdido em algum porão, já que, na época o prêmio tinha a forma de placa, sendo mais difícil de se identificar.
O Oscar, se encontrado, seria o objeto de maior valor de sua herança, pois a atriz não deixou muito dinheiro ou propriedades. Apesar de ter trabalhado a vida inteira, seus ganhos não eram tão astronômicos assim e, além do mais, Hattie preferia ajudar os necessitados e causas sociais, do que guardar.
Lendo sobre Hattie McDaniel vê-se que ela se destacou com seu talento em tudo em que se envolveu. Ainda sim, teve pouca oportunidades em papéis de destaque. Não existe “meritocracia” em uma sociedade racista.