Destacamento Blood
Da 5 Bloods
Direção: Spike Lee
Elenco: Delroy Lindo, Clarke Peters, Jonathan Majors, Chadwick Boseman, Mélanie Thierry, Norm Lewis, Isiah Whitlock Jr., Johnny Trí Nguyễn e Jean Reno.
EUA, 2020
Marvin Gaye lutou por muitos anos contra a depressão; em 1970, sofrendo com a perda prematura de uma grande amiga, a cantora Tammi Terrell, que faleceu aos 24 anos por conta de um tumor cerebral, além de estar descontente com sua própria música, que julgava insignificante e frívola diante de problemas sociais e da Guerra do Vietnã, decidiu se afastar dos palcos. Durante esse hiato, Gaye gravou o álbum What’s Going On, em que trocava as costumeiras canções românticas por músicas melancólicas de forte teor político. A obra também foi influenciada por conversas com seu irmão, Frankie, que havia retornado do Vietnã e também pela morte de um primo, que não teve a mesma sorte. Não por acaso, canções de What’s Going On pontuam Destacamento Blood, novo filme de Spike Lee, lançado em junho através da Netflix.
A História sempre foi algo muito presente na obra de Spike Lee; seja em filmes baseados em acontecimentos reais, como Malcolm X ou Infiltrado na Klan, seja em filmes que mais indiretamente retratam algum período histórico ou recorte social, caso de Faça A Coisa Certa, O Plano Perfeito, A Última Noite ou o assunto desse post, Destacamento Blood. Entretanto, Lee nunca se limita apenas a recontar acontecimentos; ele analisa os envolvidos, pessoas e povos, os vários ângulos da situação, além de seu legado para os dias atuais.
Destacamento Blood acompanha o retorno de quatro veteranos ao Vietnã. Para contar a história, Lee opta pelo realismo fantástico, mesclando a crueza de imagens reais com elementos oníricos. Na trama, Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock Jr.) são os últimos remanescentes de um grupo de fuzileiros pretos que se autodenominavam os Bloods. Juntamente com David (Jonathan Majors), filho de Paul, eles vão ao Vietnã com dois objetivos; um é financeiro: durante a guerra, o grupo topou com um avião acidentado da CIA, cheio de barras de de ouro, decidindo enterrar todo o tesouro até encontrar uma forma de transportar tudo até o EUA; o outro motivo tem a ver com encerrar o capítulo da guerra em suas vidas, recuperando os restos mortais do líder dos Bloods, Stormin’ Norman (Chadwick Boseman), morto em combate.
No entanto, como o filme enfatiza, as guerras não chegam realmente ao final. Na superfície temos um Vietnã que se transformou em paraíso turístico, com agitada vida noturna, por outro lado minas terrestres ainda cobrem parte do país. Da mesma forma, internamente a guerra também não termina; as marcas físicas e psicológicas não podem ser apagadas. Esse grupo de homens pretos, assim como tantos outros enviados ao Vietnã e a outras guerras, foram usados para defender interesses econômicos de seu país; viram amigos morrerem, mataram pessoas que eles não conheciam e nada tinham a ver, para depois serem abandonados em um sistema racista que já existia antes da guerra e continua existindo até hoje. A crítica de Lee, contudo, não se limita ao racismo, mas também ao imperialismo e anticomunismo estadunidense.
Brilhantemente interpretado por Delroy Lindo, Paul é a grande síntese dos efeitos da guerra. Um indivíduo confuso, que não sabe como expressar seu amor por seu filho e cuja personalidade paranoica, vê até seus mais antigos companheiros como possíveis inimigos. Todo o grupo é marcado pela lembrança inspiradora Stormin’ Norman, já que o líder dos Bloods era também um mentor; mesmo morto, ele continua sendo a bússola moral dos veteranos e está presente nos momentos mais cruciais do filme. Porém, Paul é praticamente assombrado por essas memórias e a noção de que fracassou diante do ideal elevado que Norman representa.
Em sua direção, Spike Lee se nega a tornar a guerra um espetáculo épico de entretenimento, como ocorre em muitos filmes do gênero (caso de 1917 e Dunkirk, só para citar obras recentes). Um exemplo de como o diretor faz isso é a escolha de mostrar as cenas da guerra na proporção de tela de 4:3, como os aparelhos antigos de televisão, em vez de widescreen. Além disso, ele insere imagens reais – e indigestas – no filme. Outro ponto que destaca essa recusa em espetacularizar a guerra em em manter os mesmo atores interpretando seus papéis também reminiscências da guerra. Nessas memórias, apenas Stormin’ permanece jovem. Afinal, ele morreu e não foi alquebrado pela vida.
Muita gente se incomoda com esse aspecto cru do cinema de Lee, porém acredito que sutileza é uma característica como outra qualquer, não é obrigatoriamente uma virtude. Às vezes, é preciso sim esfregar algumas informações na cara do público. E um dos aspectos que torna Lee um grande diretor é justamente saber quando ser sutil e quando ser agressivo, e ele pode fazer ambos dentro de um mesmo filme.