Review – O Irlandês

O Irlandês

The Irishman

Direção: Martin Scorsese

Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Anna Paquin, Harvey Keitel, Stephen Graham e Jesse Plemons

EUA, 2019

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Filme de Martin Scorsese para a Netflix foi indicado a 9 categorias no Oscar 2020

Em seis décadas de carreira, Martin Scorsese dirigiu mais de 60 filmes, imprimindo seu estilo nos mais variados gêneros. O diretor passeou pela comédia (O Rei da Comédia, Depois de Horas), romance (A Época da Inocência), musical (New York, New York), suspense (Cabo do Medo, Ilha do Medo), falou de religião (A Última Tentação de Cristo, Silêncio), de cinema (A Invenção de Hugo Cabret, O Aviador), realizou obras calcadas no estudo de personagem ( Taxi Driver, Alice Não Mora Mais Aqui, Touro Indomável, Vivendo no Limite), documentários (No Direction Home: Bob Dylan, George Harrison: Living in the Material World) e registros de shows (Shine a Light). Mas, apesar dessa imensa variedade, não dá para negar que os gangsters são uma parte importantíssima de sua filmografia. Não que um filme de máfia não possa ser ao mesmo tempo um estudo de personagem.

É interessante notar que essas narrativas sobre a máfia de Scorsese acompanham personagens diferentes, mas seguem uma sequência lógica. Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973) acompanhava peixes-pequenos na cadeia alimentar do crime organizado; já Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990) trazia personagens que atingiam um status mais elevado, porém continuavam socialmente marginalizados; em Cassino (1995), ao menos por um certo período de tempo, o poder e prestígio dos gangsters retratados é  inquestionável. Em O Irlandês temos o topo dessa cadeia alimentar, cuja influência chega no primeiro escalão da política estadunidense. Entretanto, por mais que conte a história de criminosos e seja pontuado por momentos de violência, o filme está mais interessado em examinar como escolhas durante a vida ecoam na velhice.

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Baseado no  livro I Heard You Paint Houses (eu amo esse título, que quase foi também o título do filme, mas, mesmo não sendo, aparece na tela logo no início), de Charles Brandt, O Irlandês  acompanha a trajetória de Frank Sheeran (Robert De Niro), um ex-combatente da Segunda Grande Guerra que trabalha como motorista de caminhão, até que conhece o mafioso Russell Bufalino (Joe Pesci). Serviço a serviço, Sheeran vai conquistando espaço e a total confiança de Bufalino, e conhecendo outras figuras poderosos, como  Angelo Bruno (Harvey Keitel) ou Jimmy Hoffa (Al Pacino), influente presidente do sindicato nacional de caminhoneiros. 

Construído em torno das reflexões de um Frank, O Irlandês vem e vai no tempo. Temos o protagonista já envelhecido e solitário, ao mesmo tempo em que acompanhamos uma viagem feita por ele, junto com Russell e suas respectivas esposas. Contado através do fluxo de memórias do protagonista/ narrador, o filme vai justapondo as  versões idosas com as versões mais jovens dos gangsters, resultado do ótimo efeito de rejuvenescimento digital. Mas, além da qualidade do efeito, o que é interessante de se vê é o contraponto e consequências das atitudes dos personagens quando com 40/50 anos, com quando se aproximam do fim da vida, fragilizados por doenças e os próprios erros. De um lado temos a melancolia de Frank, terminado seus dias em um asilo, de outro a agitação e perigos da  vida de gangster, demonstrando a efemeridade desse poder.  

Aliás, essa efemeridade também é ressaltada, através das legendas que surgem de vez em quando para contar o destino final de alguns personagens, como notinhas de rodapé, indicando a futilidade desses conflitos e artimanhas por poder, já que, via assassinato, acidente ou doença, a morte chega de qualquer forma. 

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Em O Irlandês, Martin Scorsese reuniu um elenco e tanto, de atores com quem já trabalhou outras vezes mais. Com Robert De Niro, este é o nono filme; com Pesci, o quarto; e com Keitel, o sexto. Sabe se lá como, este é apenas o primeiro filme do diretor com Al Pacino.

Como Frank Sheeran, a construção de De Niro é sutil. Sujeito calado, mas com por vezes explosivo, acaba sendo o improvável conciliador entre dois de seus parceiros/amigos em conflito. Como já comentei antes, o filme se centra no  contraponto entre as decisões tomadas durante a vida, com as consequências já na velhice, quando o poder e influência se extinguiu, mas os arrependimentos não. Contudo não espere nenhum longo monólogo sobre os erros do passado ou sequência de gritos e lágrimas, um simples olhar de De  Niro, diz muito mais.

O Hoffa de Pacino é o oposto de Frank. Eloquente e  caloroso, o líder sindical é uma figura cheia de nuances. Por um lado, você  sabe que ele é tão capaz de atitudes horríveis como qualquer um dos gangsters e também é movido por suas próprias ambições, contudo, não dá para não simpatizar com o personagem, que ama crianças, sorvete e tem, de fato, a intenção de melhorar a vida dos trabalhadores de seu sindicato. 

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Dos três atores principais, Joe Pesci é o que tem o papel mais diferente dos demais gangsters de sua carreira. Nos demais filmes de Scorsese, Pesci costuma interpretar o cara engraçado, mas dono de um temperamento violento. Russell Bufalino, no entanto, é um homem de gestos contidos e tom de voz calmo, que se permite demonstrações de afeto, como praticamente adotar a família de Frank, inclusive confessando lamentar não ter tido filhos. Exatamente por isso, é o mais perigoso, pois, apesar do comportamento afável, com um sutil mudança na expressão facial, você entende que ele não exitaria em se livrar do amigo, caso a situação o obrigue. E é por isso que a atuação de Pesci é brilhante.

Ainda falando das atuações, não dá para deixar de comentar a participação de Anna Paquin, como uma das filhas de Frank. Por aí no Twitter, vi algumas pessoas se queixando da falta de diálogos para a personagem. De fato, a atriz tem pouquíssimas linhas, mas isso não é algo negativo. Na verdade, é um grande acerto. Peggy é a bússola moral de Frank, seu olhar é o julgamento de seu pai. Desde criança, a menina parece enxergar toda a crueldade e egoísmo por trás da fachada de firmeza e lealdade. É justamente sua falta de diálogos que deixe esse  julgamento ainda mais implacável. Quando confrontamos alguém, mesmo que inconscientemente, acreditamos que essa pessoa pode mudar; mas, e quando você percebe que a mudança nunca vai acontecer? Nada precisa ser dito. E Paquin está maravilhosa no quesito olhar perfurante. Inclusive acho uma grande falha, a acadêmia ter indicado (merecidamente) Pacino e Pesci, mas ter ignorado De Niro e Paquin. 

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Após uma vida de violência, Frank poderia, como outros personagens da história, ter tido seu fim em meio a esse furor. Porém, sobreviveu para amargar um término pior: velho, doente, sozinho, rememorando um passado imutável.  

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